Afinal, o que é Governança Pública?

Afinal, o que é governança pública?

Robson Aurelio Neri, MSc.

Muitos gestores públicos brasileiros, nos diversos níveis hierárquicos, sejam servidores ou mandatários de cargos eletivos, carecem de mais conhecimento sobre gestão para o exercício de seus cargos e funções, que são desempenhados, nesses casos, essencialmente com base em experiência de vida e talentos pessoais. No caso de “governança”, tais gestores chegam a citar o termo aqui e acolá. Mais recentemente, até exaltam a governança, mas quando perguntados o que é “isso”, têm dificuldade para articular uma explicação razoável.

Surpreendentemente, mesmo em ambientes mais especializados, envolvendo estudiosos ou profissionais já iniciados em administração pública, observa-se desconforto e ineficácia ao tentarem explicar o que é governança, particularmente a governança pública.

Essas conclusões não decorrem de uma pesquisa científica, mas de observação ao longo mais de 25 anos de vivência em gestão, mais de 12 envolvendo governança na administração pública.

A realização de estudo nesse sentido, para verificar tal hipótese, está sendo avaliada pelo Instituto Pactos em parceria com a FAGEN – Faculdade de Gestão e Negócios da UFU – Universidade Federal de Uberlândia.

Entendemos que tal desconhecimento decorre de vários fatores. Primeiro, o termo governança, como tantos outros em economia e administração, é definido de diversas formas dependendo do referencial teórico que se escolha. Existe muita confusão na literatura (Dias e Cario, 2014). Governança pública, governança corporativa, governança organizacional, governança de TI, entre outras “governanças específicas”, da mesma forma, apresentam essa pluralidade conceitual. Tal diversidade causa confusão na compreensão do conceito. Segundo, as definições são complexas ou longas demais para os gestores “práticos”, os que realmente exercem a função gerencial. São acessíveis apenas a quem está no ambiente acadêmico ou a quem exerce atividades em organizações maduras em termos de governança (como as empresas listadas em bolsa de valores). Terceiro, as definições disponíveis enfocam processos e mecanismos e não enfatizam adequadamente, no nosso entender, a essência por trás do conceito.

Naturalmente não existe nenhum demérito no fato de os gestores, em geral, não entenderem o conceito de governança. Juntando-se ao academicismo do caso, temos a realidade educacional brasileira. O Brasil não é Brasília. A imensa maioria de agentes públicos (prefeitos, vereadores, secretários ou mesmo funcionários) estão em municípios pequenos e normalmente ascendem ao poder independentemente de seu nível de escolaridade e formação gerencial. Questões chave, da mais alta relevância como governança pública, devem ser tratadas, difundidas e implementadas com a maior simplicidade possível (não se confundindo, obviamente com abordagem simplista).

Não detalharemos aqui, portanto, teorias normalmente endereçadas quando se estuda governança, como a teoria da agência, da firma, da escolha pública ou dos contratos, mas entendemos que o cerne da governança está em garantir que os interesses de alguém sejam respeitados quando um representante age em seu nome (problema de agência, da teoria da agência). Portanto, a definição de governança deve dizer isso de forma simples e direta, para que todos entendam e possam replicar.

Vejamos algumas definições disponíveis na literatura (o dicionário também não ajuda muito). Imediatamente a seguir apresentamos a nossa definição:

Governança

Michaelis: ato ou processo de governar, governo, governação.

Governar

Michaelis:

  1. Exercer o governo de, ter autoridade sobre: Governar um povo.
  2. Conduzir, regular o andamento de: Governar uma carruagem.
  3. Ter mando ou direção: A ele é que cabe governar.
  4. Administrar, dirigir: Governar uma empresa.
  5. Dirigir as ações de; dominar: Não raro a mulher governa o marido.
  6. Andar direito, não errar, ter juízo: Cabeça repleta de álcool já não governa.
  7. Dirigir o seu procedimento, regular-se.
  8. Obedecer à ação do leme: Este barco já não governa.
  9. Governar a vida: agenciar meios de subsistência pelo trabalho. Governar bem o seu barco: dirigir ou gerir com acerto os seus bens e os seus negócios.

Houaiss: Ter mando, direção, dirigir, administrar, controlar, influenciar fortemente as ações e o comportamento de algo ou alguém.

 

Governança Corporativa

  1. sistema e a estrutura de poder que regem os mecanismos através dos quais as companhias são dirigidas e controladas” (Cadbury Committee, 1992);
  2. o conjunto de mecanismos pelos quais os fornecedores de recursos garantem que obterão para si o retorno sobre o seu investimento; (Shleifer e Vishny 1997)
  3. os mecanismos ou princípios que governam o processo decisório dentro de uma empresa, visando minimizar os problemas de agência; (Carvalho 2002, 2007)
  4. um conjunto de relacionamentos entre a gestão da companhia, seu conselho de administração, acionistas, e outras partes interessadas. Fornece a estrutura pela qual os objetivos da companhia são estabelecidos, e os meios para atingi-los e o monitoramento da performance são determinados (tradução livre) (OECD 2004).
  5. (governança empresarial) capacidade de controlar o comportamento dos agentes de uma organização, fazendo com que os recursos dessa organização sejam mobilizados e aplicados de forma eficaz e eficiente e sob níveis de risco adequados para o cumprimento da missão e dos objetivos requeridos pelos acionistas e outros participantes relevantes; (Santos 2004)
  6. conjunto de valores, princípios, propósitos e regras que rege o sistema de poder e os mecanismos de gestão das corporações, buscando a maximização da riqueza dos acionistas e o atendimento dos direitos de outras partes interessadas, minimizando oportunismos conflitantes com este fim; (Andrade e Rossetti 2004)
  7. sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC 2015)

Nossa definição:

Governança corporativa – Garantia dos interesses dos sócios na atuação de sua organização.

Governança de TI (tecnologia da informação):

  • Processos que asseguram o uso efetivo e eficiente da TI viabilizando uma organização a atingir seus objetivos (tradução livre). (Gartner Group)
  • Elemento da governança corporativa, com o objetivo de aperfeiçoar a gestão geral da TI e entregar melhores valores do investimento em informação e tecnologia (tradução livre) (IT Governance)
  • ferramental para a especificação dos direitos de decisão e responsabilidade, visando encorajar comportamentos desejáveis no uso da TI. Weill e Ross (2004)

Nossa definição:

Governança de TIgarantia de que a TI atenda adequadamente aos interesses da organização.

 

Governança pública:

  1. É o governo visando objetivos coletivos de uma sociedade, com o enfoque na coordenação autônoma, interdependente e responsável de diferentes instituições, redes e atores sociais, utilizando estruturas, mecanismos e regulações justas, coerentes, consistentes e aceitas pela sociedade. (STREIT; KLERING, 2005)
  2. É a maneira pela qual os valores subjacentes de uma nação, articulados em uma constituição, são institucionalizados. (OCDE, 2000)
  3. refere-se aos arranjos formais e informais que determinam como as decisões públicas são feitas e como as ações públicas são implementadas, pela perspectiva da manutenção dos valores constitucionais de cada país quando em face de problemas e ambientes em mudança. (OCDE 2018)
  4. sistema que compreende os mecanismos institucionais para o desenvolvimento de políticas públicas que garantam que os resultados desejados pelos Cidadãos, e demais entes da vida pública, sejam definidos e alcançados. (IBGP, 2014)
  5. conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade (Decreto federal 9.203/2017, PL 9163/2017 CD e PL 5898/2019 SF);
  6. (governança organizacional) mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a atuação da gestão, com vistas à condução do TCU em relação às suas atividades político-institucionais e serviços de interesse da sociedade (RESOLUÇÃO-TCU Nº 320, DE 12 DE AGOSTO DE 2020)
  7. (governança pública organizacional) – aplicação de práticas de liderança, de estratégia e de controle, que permitem aos mandatários de uma organização pública e às partes nela interessadas avaliar sua situação e demandas, direcionar a sua atuação e monitorar o seu funcionamento, de modo a aumentar as chances de entrega de bons resultados aos cidadãos, em termos de serviços e de políticas públicas (Brasil. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de governança aplicável a organizações públicas e outros entes jurisdicionados ao TCU / Tribunal de Contas da União. Edição 3 – Brasília: TCU, Secretaria de Controle Externo da Administração do Estado – SecexAdministração, 2020).
  8. (governança no setor público) – mecanismos de liderança, estratégia e accountability postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a atuação da gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade (TRT 18ª – RESOLUÇÃO ADMINISTRATIVA Nº 83/2018)
  9. capacidade de os sistemas políticos e administrativos agirem efetiva e decisivamente para resolver problemas públicos (PETERS, 2012). (CNM)
  10. TEIXEIRA e GOMES (2019) apresentam pelo menos 36 definições de governança pública em sua revisão da literatura sobre o conceito.

Nossa definição:

Governança pública garantia do interesse público nas ações de Estado.

As definições que apresentamos são muito mais fáceis de serem entendidas por todos e traduzem a essência conceitual. Uma definição bem compreendida é muito mais fácil de ser difundida e implementada na prática.

Por outro lado, algumas definições acima referenciadas, em particular a do Decreto Federal e dos projetos de Lei na Câmara dos Deputados e Senado Federal, falam apenas em prestação de serviços de interesse da sociedade, mas não falam em gestão que atenda aos interesses da sociedade (excluindo, portanto, questões como eficiência, ética e integridade, por exemplo).

Governança pública zela pelo interesse público e Gestão executa políticas públicas. Quem produz é a gestão. Quem controla e direciona a gestão é a governança. Governança é, portanto, atribuição do mais alto nível da cadeia hierárquica da organização, com a missão de preservar o interesse público na atuação da gestão.

Interesse público tem definições jurídicas, mas tem também entendimento comum pela sociedade. São como os requisitos de qualidade. Alguns são explícitos, outros não. Quando se escolhe um hotel para uma viagem não se pergunta na recepção se os banheiros e a roupa de cama estão limpos. Isso já é esperado (embora algumas vezes não ocorra na prática). O interesse público não está apenas nos resultados (políticas públicas e serviços públicos adequados), mas também no processo de obtê-los. Espera-se que as organizações públicas e seus agentes (gestores, servidores, contratados) ajam em acordo com as normas vigentes (legalidade, conformidade, compliance), que não gastem mais do que o necessário (eficiência), que façam o que precisa ser feito para a melhoria do bem-estar da sociedade (eficácia, efetividade, geração de valor), preservem o meio ambiente e a comunidade local (sustentabilidade, responsabilidade socioambiental), que não sejam surpreendidos por tragédias evitáveis (gestão de riscos), que não se apropriem do bem público (moralidade, ética, integridade), que informem claramente como estão trabalhando (publicidade, transparência, prestação de contas) e que sejam penalizados por não agirem assim (responsabilização, accountability). Deve haver mecanismos para se verificar se o interesse público está sendo resguardado (auditoria externa, auditoria interna, controle social).  Muito do interesse público está endereçado nos princípios constitucionais da administração pública (BRASIL, 1988)

Todas essas características integram e compõem o conceito de governança. Não faz sentido, portanto, no nosso entendimento, falar de “programa de governança e riscos” pois riscos são aspectos inerentes de governança. Da mesma forma, “comitê de governança e compliance” uma vez que o primeiro engloba o segundo (sem contar que a palavra compliance é muito pouco conhecida pelos brasileiros, não ajudando a difundir a governança em toda a administração pública brasileira)

Os casos de desastres ambientais evitáveis ou mitigáveis são também questões de grande interesse da sociedade e, portanto, questões de governança pública.  Um Estado que não faça a adequada gestão dos riscos ambientais, principalmente envolvendo grandes empresas, não está garantindo os interesses da sociedade. Isso é falta de governança e isso tem que ser abrangido no conceito de governança.

Outra expressão comum, mas explicada de inúmeras maneiras é “boa governança”. Agora fica bem mais simples. Boa governança é uma boa garantia de que o interesse público está resguardado.

A implementação da governança já é outra questão. Seguirá uma lógica baseada em valores, princípios, políticas, mecanismos, atores, normas, códigos, processos, relacionamentos, estratégia, planejamento, coordenação, direcionamento, monitoramento e avaliação. Esses elementos, entre outros, compõem um sistema. Aqui, novamente, a escolha e configuração de cada um desses elementos depende do referencial teórico (ou mesmo ideológico) que se adote. De qualquer forma, embora a institucionalização de apenas um ou dois desses elementos já seja um importante passo na implementação de governança pública, a abordagem sistêmica apresenta chance muito maior de sucesso pois mostra o todo. Ver o todo ao mesmo tempo não significa implementar o todo simultaneamente. A visão sistêmica facilita planejar a execução que deve ser progressiva.

No próximo artigo explicaremos por que, em organizações com maturidade gerencial ainda não muito avançada, a governança deve ser implementada e executada de forma integrada à gestão estratégica, ou seja, uma organização pública deve dispor de um “sistema de governança e gestão estratégica”, um bloco integrado.

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Robson A Neri, é engenheiro do ITA com mestrado em Stanford. Mestrando em Gestão Púbica pela UFU – Universidade Federal de Uberlândia. Desenhou e implementou o sistema de governança corporativa e gestão estratégica do Senado Federal. Fundador e Diretor Executivo do Instituto Pactos de Desenvolvimento Regional Sustentável.

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REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Adriana; ROSSETTI, José Paschoal. Governança Corporativa: fundamentos, desenvolvimento e tendências. São Paulo: Atlas, 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.          Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>  Acesso em: 12 nov. 2020 .

______.  Decreto nº 9.203, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, Brasília, DF, 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9203.htm>. Acesso em: 22 mai. 2021.

______.  Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 9163, de 23 de novembro de 2017. Dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2163153> Acesso em: 11 set. 2019.

______.  Senado Federal. Projeto de Lei nº 5898, de 5 de novembro de 2019. Dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Disponível em: <https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-5898-2019 > Acesso em: 11 set. 2019.

______. Senado Federal. Ato do Primeiro Secretário Nº 16, de 22 de dezembro de 2011. Institui o Sistema de Governança Corporativa e Gestão Estratégica do Senado Federal. Disponível em: <https://adm.senado.leg.br/normas/ui/pub/normaConsultada;jsessionid=529742207650261CC79D0E5E7C2AF9E5.tomcat-1?0&idNorma=226804>. Acesso em: 14 jun. 2021.

______. Tribunal de Contas da União. Resolução-TCU Nº 320, de 12 de agosto de 2020: Dispõe sobre a política de governança organizacional do Tribunal de Contas da União. Disponível em: <https://portal.tcu.gov.br/data/files/67/72/82/D7/AB1147109EB62737F18818A8/BTCU_20_de_21_08_2020_Especial%20-%20%20Pol%C3%ADtica%20de%20governan%C3%A7a%20organizacional%20do%20TCU.pdf >. Acesso em: 1 jul. 2021.

CAMBRIDGE. University of Cambridge. The Cadbury Report. Report of the Committee on the Financial Aspects of Corporate Governance, 1992. Disponível em: <https://ecgi.global/sites/default/files//codes/documents/cadbury.pdf> . Acesso em: 11 set. 2019.

CARVALHO, Antonio Gledson de. Governança corporativa no Brasil em perspectiva. Revista de Administração, São Paulo, v. 37, n. 3, p. 19-32, jul./set. 2002.

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SANTOS, Lilian Regina dos. A governança empresarial e a emergência de um novo modelo de controladoria. 2004. Dissertação (Mestrado em Controladoria e Contabilidade) – Programa de Pós-Graduação em Controladoria e Contabilidade, Departamento de Contabilidade e Atuaria, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. Disponível em <https://docplayer.com.br/82458253-A-governanca-empresarial-e-a-emergencia-de-um-novo-modelo-de-controladoria.html> Acesso em: 24 set. 2021

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WEILL, Peter; ROSS W. Jeanne. Governança de Tecnologia da Informação. Ed. M.Books do Brasil. São Paulo. 2004.

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Como citar:

NERI, Robson Aurelio. Afinal, o que é Governança Pública? Instituto Pactos de Desenvolvimento Regional Sustentável,  2021. Disponível em: <https://pactos.org.br/artigos/> .