Notas sobre governança no setor público
Robson Aurelio Neri, MSc.
As funções públicas do Estado são consagradamente a executiva (ou administrativa), a legislativa e a judiciária (ou jurisdicional) e não existe uma relação biunívoca entre essas três funções e os três poderes constitucionais, visto que cada poder tem suas funções típicas e as atípicas, como resumidamente é mostrado a seguir:
Poder | Executivo | Judiciário | Legislativo
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Funções típicas | · Administrativa | · Jurisdicional | · Legislativa
· Fiscalização do Executivo · Investigação e inquérito parlamentar
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Funções atípicas | · Legislativa (medidas provisórias)
· Jurisdicional |
· Administrativa
· Legislativa (interna) |
· Administrativa
· Jurisdicional (julga o Presidente da República) |
Adotamos a definição de governança pública como sendo a “garantia do interesse público nas ações de Estado” (NERI, 2021),
Avaliar o desempenho da governança pública de um Poder inclui medir, além de diversos outros parâmetros, a eficácia e efetividade das entregas realizadas por cada uma de suas funções, e avaliar o alinhamento com o interesse público.
As entregas da função administrativa (típica) do Poder Executivo são, em tese, facilmente mensuráveis, uma vez que se pode medir o desempenho e impacto de políticas públicas e dos serviços públicos.
De forma análoga, as entregas produzidas pela função administrativa (atípica) dos poderes Judiciário e Legislativo também podem ser medidas uma vez que fornecem produtos e serviços tradicionais de apoio às atividades legislativas e judiciárias.
Por outro lado, não conhecemos indicadores objetivos amplamente aceitos para apontar se o desempenho legislativo ou judiciário atende ou não ao interesse público. Há métricas quantitativas sobre a produção do legislativo ou do judiciário, mas que não traduzem necessariamente a qualidade e o impacto social dessa produção. É possível até medir o nível geral de satisfação da sociedade com relação ao desempenho dessas funções, mas não haveria mecanismos de responsabilização, exceto nos casos de conduta não ética ou a escolha de votos nas eleições seguintes.
Em outras palavras, é razoável dizer que atualmente é possível instituir um sistema de governança pública para o Poder Executivo e, pelo menos em tese, é possível definir indicadores para avaliar esse sistema.
Já no Legislativo por exemplo, um sistema de governança pública, embora permita tratar dos aspectos como conduta ética parlamentar, transparência, participação social, ouvidoria, conformidade ao processo legislativo, entre outros, seria uma construção incompleta, pelo menos até que surjam meios para se avaliar objetivamente a eficácia, efetividade e os impactos na sociedade da produção legislativa. Desconhecemos, também, mecanismos estruturados para controle do processo legislativo, sejam controle externos ou internos. Mecanismos não estruturados incluem as ações de controle social como a imprensa, grupos de interesse e manifestações populares.
Entretanto, pode-se falar em um sistema de governança para a função administrativa do Poder Legislativo, uma vez que tal função é estruturada com base em fundamentos de gestão similares à da iniciativa privada e que adotam modelos reconhecidos de governança corporativa.
Uma questão que surge é: como denominar a governança da função administrativa do poder legislativo? Tentamos responder a essa pergunta quando estávamos desenhando o sistema de governança do Senado Federal. Não conseguimos, entretanto, localizar nenhuma referência na literatura (com essa nossa abordagem). Consultamos colegas à época, estudiosos do TCU e da Câmara dos Deputados, bem como de organizações privadas de governança, mas ninguém indicou uma referência clara. Sabíamos que não poderíamos utilizar “governança pública” pois não englobava a atividade parlamentar. Tampouco poderíamos utilizar a denominação “governança legislativa”, exatamente pelo mesmo motivo (a Câmara dos Deputados eventualmente utiliza a expressão “Governança Legislativa” como a organização da atividade legislativa em colegiados na formação da Mesa Diretora, das Comissões e demais colegiados como o Conselho de Ética). As demais opções que consideramos foram governança corporativa, governança institucional, governança organizacional e governança administrativa. Eventualmente qualquer uma delas, com variados graus de argumentos contra e a favor, poderia ser utilizada.
Em 2009, quando desenhávamos uma estrutura de governança no Prodasen (“departamento” de informática do Senado), utilizamos a expressão “governança organizacional:
Quando começamos a atuar em toda a administração do Senado, reunimos a cúpula administrativa da Casa em uma comissão especial para propor a estratégia de aperfeiçoamento do processo de governança organizacional e gestão estratégica do Senado Federal (BRASIL a, 2009) (em outro artigo, explicamos porque decidimos integrar governança a gestão estratégica). Na execução dessa estratégia, decidimos, por fim, adotar a expressão “governança corporativa” por já ser uma expressão consolidada, pelo fato de a estrutura e operação da função administrativa poder ser tecnicamente qualificada como uma corporação (não é exclusividade do setor privado), e para evitar criar mais uma expressão no já congestionado glossário do tema.
Criamos, então, o Sistema de Governança Corporativa e Gestão Estratégica do Senado Federal (BRASIL b, 2011),
Dessa forma, concluímos que a fração viável da governança pública no legislativo é a governança corporativa para garantir o interesse público no exercício da função administrativa da casa parlamentar, que dá suporte logístico à sua função legislativa.
Por analogia, poderíamos concluir que a fração viável da governança pública no judiciário é a governança corporativa para garantir o interesse público no exercício da função administrativa da instituição, que dá suporte logístico à sua função judiciária.
Entendemos, dessa forma, que não existe governança legislativa, nem governança judiciária, nem governança executiva. Existe governança pública que, na prática pode ser implementada integralmente no Poder Executivo, e, por enquanto, parcialmente (governança corporativa) nos outros dois poderes, abarcando suas respectivas funções administrativas.
A figura seguinte mostra o modelo dos triângulos invertidos que representa a estrutura do sistema de governança corporativa do IBCG (IBCG, 2015)
Esse modelo é utilizado como referência para adaptações no setor público, como no caso do TCU (BRASIL c, 2020) mostrado a seguir.
Nesse modelo do IBCG, e na sua versão derivada do TCU, o triângulo superior representa a instância da governança e o triângulo inferior, a instância da gestão. A gestão é quem produz o que a instituição, pública ou privada, entrega a seus clientes ou usuários (cidadãos e sociedade no setor público). No caso do Poder Executivo, a máquina administrativa é quem produz e entrega os produtos finais (políticas públicas e serviços públicos) e o modelo dos triângulos invertidos aplica-se adequadamente. Nos outros dois poderes, entretanto, essa lógica não se aplica, uma vez que quem está produzindo os produtos finalísticos são os parlamentares e os ministros, os membros dos poderes, e não a máquina administrativa. O processo produtivo central são o processo legislativo e o processo judiciário, respectivamente, e não os processos administrativos.
A representação da estrutura do sistema de governança pública do Legislativo, por exemplo, teria no triângulo inferior, com ênfase e como instância produtiva, todas as formas de atuação da atividade parlamentar como as Comissões, Plenário, a Mesa e os próprios parlamentares. O processo de “gestão” não é o de gestão pública técnica, tradicional, mas de articulação política na definição da direção e ritmo da produção legislativa. A representação das atividades da função administrativa seria, no máximo, acessória, de suporte, como mínimo destaque. Inusitadamente, o Plenário constaria também do triângulo superior, uma vez que é a instância máxima deliberativa da Casa. A Comissão de ética e decoro parlamentar e a Ouvidoria também se instalariam na instância da governança pública. Por outro lado, não identificamos mecanismos estruturados de controle interno ou externo, como instrumentos de governança pública no legislativo, como explicado anteriormente.
Entretanto, o modelo do IBCG aplica-se à representação da estrutura do sistema de governança corporativa do Legislativo, onde as atividades da função administrativa da Casa são dispostas no triângulo inferior – a instância de gestão. Não faz sentido, porém, incluir na instância de governança a Comissão de ética e decoro parlamentar e as demais Comissões (exceto a Comissão Diretora), uma vez que não integram a função administrativa, mas a função legislativa.
Raciocínio análogo aplica-se à representação da estrutura do sistema de governança pública e governança corporativa no poder judiciário.
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Robson A Neri, é engenheiro do ITA com mestrado em Stanford. Mestrando em Gestão Púbica pela UFU – Universidade Federal de Uberlândia. Desenhou e implementou o sistema de governança corporativa e gestão estratégica do Senado Federal. Fundador e Diretor Executivo do Instituto Pactos de Desenvolvimento Regional Sustentável.
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REFERÊNCIAS:
BRASIL a, Senado Federal. Ato do Primeiro Secretário Nº 24, de 7 de maio de 2009. Institui Comissão Especial para elaborar proposta de estratégia e ações para aperfeiçoamento do processo de governança organizacional e gestão estratégica do Senado Federal. Disponível em: < https://adm.senado.leg.br/normas/ui/pub/normaConsultada?1&idNorma=261068 >. Acesso em: 14 jun. 2021.
BRASIL b, Senado Federal. Ato do Primeiro Secretário Nº 16, de 22 de dezembro de 2011. Institui o Sistema de Governança Corporativa e Gestão Estratégica do Senado Federal. Disponível em: < https://adm.senado.leg.br/normas/ui/pub/normaConsultada;jsessionid=529742207650261CC79D0E5E7C2AF9E5.tomcat-1?0&idNorma=226804 >. Acesso em: 14 jun. 2021.
BRASIL c. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de governança aplicável a organizações públicas e outros entes jurisdicionados ao TCU / Tribunal de Contas da União. Edição 3 – Brasília: TCU, Secretaria de Controle Externo da Administração do Estado – SecexAdministração, 2020. 242p.
Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. Código das melhores práticas de governança corporativa. 5.ed. / Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. – São Paulo, SP: IBGC, 2015. 108p.
NERI, Robson Aurelio. Afinal, o que é Governança Pública? Instituto Pactos de Desenvolvimento Regional Sustentável, 2021. Disponível em: <https://pactos.org.br/artigos/ > . Acesso em: 21 set. 2021.